sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Descaso com ferrovias deixa Minas Gerais fora dos trilhos


Muitos trechos ferroviários tradicionais estão completamente abandonados e muitos foram saqueados.
A Agência Nacional dos Transportes Terrestres (ANTT) exige das concessionárias  que apresentem projetos de recuperação das ferrovias brasileiras.
Ricardo Beghini - Do Hoje em Dia
Descaso sucateia paulatinamente a malha ferroviária mineira
Dezenas de cidades mineiras cresceram e se desenvolveram ao longo dos trilhos. Mas a forte ligação histórico-cultural de Minas com locomotivas, estações e marias-fumaça não foi capaz de evitar o abandono de tradicionais trechos ferroviários do Estado. A Linha Mineira, uma das ligações férreas entre Belo Horizonte e Rio de Janeiro, é um exemplo do descaso e omissão das autoridades responsáveis pelo setor.
Invasões na faixa de domínio da ferrovia, furtos de trilhos e dormentes e construções irregulares sobre a linha férrea são observados em vários pontos do trajeto que, em Minas, atravessa cidades como Itabirito, na Região Central, Ponte Nova, Viçosa, Visconde do Rio Branco, Ubá, Cataguases e Além Paraíba, na Zona da Mata.
Com a privatização da malha ferroviária brasileira, em 1996, a Linha Mineira foi concedida à Ferrovia Centro-Atlântica (FCA), subsidiária da Vale. A companhia, no entanto, utiliza pouco mais de um quinto dos quase 500 quilômetros do trecho outorgado pela União. A empresa faz o transporte de bauxita, entre Cataguases e Paraíba do Sul (RJ). Entre Mariana e Ouro Preto, num trajeto de 12 quilômetros, a FCA disponibiliza um trem turístico e socioeducativo.
O restante caiu no esquecimento da concessionária e do poder público que deveria fiscalizar o contrato de concessão. O documento determina que a empresa zele pelos bens vinculados à concessão, mantendo o patrimônio em perfeitas condições de funcionamento e conservação até a transferência à concedente ou à nova concessionária. 
Ferrovia Centro Atlântica se limita a utilizar os trchos com potencial
econômico ou de exploração turística (Foto Felipe Couri)
 "Isto inclui os trechos que não estão sendo utilizados", ressalta Paulo Henrique Nascimento, presidente da Organização Não Governamental (ONG) Amigos do Trem que, desde o final dos anos de 1990, denuncia o sucateamento dos bens ferroviários do país.
Pressões de entidades como a Amigos do Trem e Ministério Público Federal (MPF) levaram a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) a baixar uma resolução, no início do mês passado, que pode mudar o quadro de abandono em 33 trechos ferroviários brasileiros.
Três deles estão em território mineiro, sendo que dois estão na Linha Mineira. O primeiro na Linha Mineira é entre as estações de Barão Camargos (Cataguases) e Lafaiete Bandeira (Itabirito). O segundo entre General Carneiro (Sabará) a Miguel Burnier (Ouro Preto). Os dois totalizam 418 quilômetros. O terceiro trecho fica no Sul de Minas, entre os municípios de Itaú de Minas e Serrana (SP), perfazendo 165 quilômetros.
Até o dia 6 de setembro as concessionárias, incluindo a FCA, deverão apresentar cronogramas físicos para execução de obras de recuperação dos trechos e ramais ferroviários determinados pela ANTT. A medida visa adequar as ferrovias para o transporte de cargas, no mínimo, nas mesmas condições previstas à época das assinaturas dos contratos de concessão e arrendamento.
O coordenador do Grupo de Trabalho e Transportes da Procuradoria Geral da República (PGR/MPF), Thiago Nobre, entende que as empresas deveriam operar os trens em todo o trecho concedido pela União, o que evitaria o abandono de percursos de menor interesse econômico. "A omissão da ANTT é evidente em relação à fiscalização das concessionárias e ferrovias", denuncia o procurador.
Sobre a linha que liga a estação de Dona Euzébia existe uma praça 
construída pela prefeitura (Foto: Felipe Couri)
A malha ferroviária brasileira está distribuída entre 13 companhias. A América Latina Logística (ALL) detém 60% das concessões. "Fiscais da ANTT não tinham sequer talões de multa", revela Nobre, que trabalha na sede da PGR em Lajes, noroeste de São Paulo.
Além de pressionar a agência que regula o setor, os procuradores do GT Transportes ingressaram com uma representação junto ao Tribunal de Contas da União (TCU). Uma das solicitações é que sejam iniciados, ainda no segundo semestre deste ano, levantamentos técnicos para constatar e quantificar os prejuízos provocados pelo descaso, estabelecendo valores e responsabilidades.
"Cada quilômetro de ferrovia custa, em média, R$ 2 milhões", ressalta Nobre, levando-se em conta as despesas com pontes, viadutos, estações, oficinas e desapropriações.
Linha Mineira, 100 Km de abandono.
A privatização, em 1996, abriu as portas para invasões, furtos e utilização irregular de trilhos e estações.
Em São Geraldo, a oficina virou palco de shows, enquanto a estação não tem trilhos
Remanescente da malha ferroviária da Estrada de Ferro Leopoldina, construída no período Imperial, em 1872, a Linha Mineira, a partir de 1957, ficou sob responsabilidade da Rede Ferroviária Federal (RFFSA). O principal produto transportado pelos trilhos era o café. O declínio da atividade cafeeira marcou o início da decadência da ferrovia. A privatização, em 1996, abriu as portas para invasões, furtos e utilização irregular de trilhos e estações.
O Hoje em Dia percorreu sete cidades da Linha Mineira, em um trecho de pouco mais de 100 quilômetros entre Cataguases e Coimbra, ainda na Zona da Mata. Perto da estação de Barão de Camargos, em Cataguases, uma composição com cerca de dez vagões de carga e de transporte de passageiros encontra-se emperrada, parcialmente destruída, e tomada pelo mato alto e ferrugem.
"Cada vagão custa R$ 400 mil", lembra o presidente da Organização Não Governamental (ONG) Amigos do Trem, Paulo Henrique Nascimento. Em Dona Euzébia, distante cerca de 15 quilômetros, uma placa colocada recentemente pela Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) alerta sobre a proibição de se construir sobre os trilhos da ferrovia, mas a prefeitura ergueu uma praça sobre a Linha Mineira e se prepara para fazer um calçamento ao longo da ferrovia.
O roubo de trilhos tornou-se comum em diversos trechos no estado (Foto: Felipe Couri)
Em Astolfo Dutra, moradores projetaram jardins sobre a linha férrea. Na mesma cidade, um bar e um posto de combustível foram construídos na faixa de domínio, que prevê uma distância mínima 3,5 metros para cada lado a partir dos trilhos. Em um dos trechos, já na periferia do município, a população transformou a faixa de segurança em pista de caminhada.
Seguindo viagem, em Ubá, a estação ferroviária, o armazém e antiga cabine de comunicação para o controle do tráfego são ocupados por repartições municipais. O pátio, onde havia seis linhas férreas, foi tomado por uma avenida. "Ubá é um polo de fabricação de móveis e, se houvesse a ferrovia, a cidade seria mais rica", diz o ferroviário aposentado João do Carmo Oliveira, que mora em frente ao pátio da Linha Mineira, onde trabalhou na manutenção de equipamentos elétricos e de comunicação.
Na cidade de Visconde do Rio Branco, os trilhos estão integrados ao cenário urbano, o que dificultará a retomada das operações na ferrovia. A estação ferroviária, por sua vez, foi ocupada pela Secretaria de Saúde. Segundo Paulo Henrique, em geral, os bens ferroviárias são cedidos às prefeituras mediante cessão, venda ou convênio estabelecido com a Secretaria de Patrimônio da União (SPU).
"Se essas instalações forem consideradas no futuro com reserva técnica para a expansão ferroviária, elas terão que ser devolvidas, provocando prejuízos às prefeituras que investiram no local", salienta o presidente da Amigos do Trem.
Na vizinha São Geraldo, distante 15 quilômetros, outros graves exemplos de transformações curiosas a que a Linha Mineira vem sendo submetida. Na cidade, a oficina de manutenção mais importante da ferrovia se transformou num palco de shows. A antiga sede da Polícia Ferroviária Federal de alojamentos de maquinistas é agora garagem da prefeitura. Já a estação, apesar do letreiro "centro cultural", está abandonada, servindo de abrigo para pombos.
A excursão pelos trilhos da Linha Mineira termina em Coimbra, onde estão duas das principais aberrações encontradas pelo Hoje em Dia . A prefeitura inaugurou no mês passado uma nova rodoviária, erguida justamente sobre a ferrovia. Na zona rural, num trecho de serra, a 3 quilômetros da cidade, o cenário é dos mais desoladores. Dezenas de trilhos foram furtados ao longo dos últimos anos, deixando um estranho vazio entre as montanhas do município.
Promessa de recuperação
A FCA informou que a Linha Mineira já apresentava baixo volume de movimentação de carga antes do início do contrato de concessão.
A Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) informou, por meio de nota, que, por indisponibilidade de mercado, a Linha Mineira já apresentava baixo volume de movimentação de carga antes do início do contrato de concessão. "Nos últimos anos, a FCA tem feito esforços constantes para captação de cargas nas regiões atendidas por esta parte da malha, mas infelizmente nenhum projeto se viabilizou ainda", diz o comunicado.
A companhia alega que mantém vigilantes no trecho e informa à polícia qualquer ocorrência observada. Segundo a FCA, o trabalho em parceria resultou na autuação, ao longo dos anos, de vários criminosos e na recuperação de material ferroviário. "Há um esforço permanente por parte da empresa também na questão da invasão da faixa de domínio. Existem cerca de 280 processos de reintegração de posse relacionados à Linha Mineira em andamento atualmente", informa.
A FCA destaca ainda que já firmou compromisso com a Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) para a recuperação do trecho e que já foram elaborados e apresentados ao órgão alguns estudos técnicos para a recuperação da malha, o que será feito dentro de prazos determinados pelo órgão regulador.
A ANTT não retornou ao pedido de entrevista do Hoje em Dia para esclarecer as denúncias de falta de fiscalização sobre o contrato de concessão firmado entre a União, por intermédio do Ministério dos Transportes, e a FCA.
O prefeito de Dona Euzébia, Itamar Ribeiro Toledo, o Mazinho, diz que a praça erguida sobre a Linha Mineira é uma obra da gestão anterior. Informa também que iniciará o calçamento na faixa de domínio da ferrovia somente depois de se reunir com a diretoria da FCA.
Já o secretário de Planejamento de Ubá, Francisco Nascimento, afirma que a decisão de asfaltar parte dos trilhos da linha férrea também partiu de administrações passadas. Ele revelou que todos os prédios da extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA), no Centro da cidade, foram adquiridos pela prefeitura, que é contrária à retomada da ferrovia no atual traçado. "Defendemos um contorno ferroviário, pois acreditamos na importância da linha para o desenvolvimento da região", diz.
O diretor-financeiro da Prefeitura de São Geraldo, Marcílio Moreira Barros, lembra que todos os prédios da oficina da Linha Mineira foram comprados pela prefeitura na época da liquidação do escritório regional da RFFSA de Campos (RJ). Ele contou ainda que a estação será reformada com recursos do ICMS. Marcílio admitiu, no entanto, que parte da faixa de domínio da ferrovia foi calçada no município, que fará a retirada do material caso seja solicitado.
O prefeito de Coimbra, Antônio José Cunha, diz que não sabia que a nova rodoviária do município, inaugurada no mês passado, está sob a faixa de domínio da ferrovia. Ele alega que o projeto começou na gestão do prefeito anterior. "Como chefe do Executivo, tenho que dar sequência à obra. Ela deveria ter sido embargada no início", justifica.

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